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terça-feira, 4 de outubro de 2016

paz

pela lacuna deixada por todos os passos
pelas palavras que nunca foram consumadas
pelos olhares que me atravessam como à água
por todas as noites dentro dessa noite
pelas harpias que rasgaram meu peito
pelas estações que mudaram de nome
pelos fantasmas nos corredores
pelas nuvens amarelas

pelas sereias ingênuas
pela solidão indesejada
pelas mentiras da philia
pelo pecado da culpa
pelas lágrimas secas
pelas cores furtivas
pelo futuro do pretérito
pelas brasas veladas
pelos monstros dormentes
pelo espectro na neblina

pelos olhos da górgona que fabrica musas
pelo fraco ulular da esperança
pelo suspiro lilás do crepúsculo
pelo ar que molda tua voz

liberta
liberta
liberta
liberta

benditos sejam os casulos, pois abrigam asas
benditos sejam os casulos

luz de leão rompendo as paredes finas o sangue da lagarta é meu néctar

não preciso de mais nada
eu sou a nuvem

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

(13/10/2015)

nossos reflexos em movimento
seus olhares se encontram
nossos corpos pétreos
pensam
no tempo
eu não sou corpo\\
seu reflexo me
                            Assombra
à noite
lapido o melhor poema que lhe possa servir de oferenda:
queimado no altar do medo

é melhor sofrer um mal do que causá-lo

Sócrates tinha Xantipe
mas ela o tinha de volta

domingo, 11 de setembro de 2016

4199:2

meu coração é templo dedicado ao sol
onde vive uma sacerdotisa em devoção muda

ela morre um pouco a cada noite
e uma mariposa aterrisa em seus lábios
trazendo o sol na manhã seguinte

nas paredes do templo são pregados
pedacinhos de glória
flanela vermelha
e som
para consagrar o solo

mas se o sol ouve suas preces
jamais as respondeu
e ela queima viva no rosto de cada passante
que fotografa o crepúsculo

domingo, 17 de julho de 2016

MCMII (13/5)

cante a canção dos marinheiros perdidos
ou qualquer outra, antes que eu me esqueça
cante para o vazio que lhe encara de volta
nas portas de metal polido
cante e eu desviarei o olhar
mas não me deixe esquecer sua voz

cante-me suas ondas, seus dedos de espuma
o cheiro de sal nas paredes do meu túmulo
me traz de volta para casa
cante com os olhos de admiração e ternura
que ainda ontem me esfolaram o rosto
cante e eu me cobrirei de escamas
mas não me deixe esquecer

cante a canção das aves afogadas
das âncoras presas a seus cabelos
cante e rasgue as redes que te prendem
por trás desse sorriso de madeira
cante e eu ouvirei de muito longe
mas não me deixe

terça-feira, 5 de julho de 2016

quarta-feira, 8 de junho de 2016

schumann

nos corredores onde fantasmas tocavam piano
eu respirei-te

e quando a água invadiu meus pulmões
minha visão tornou-se clara

que tudo seja vento
e que o gelo da piedade
me leve

deixei escapar teu nome nos dedos de nixes
pela vocação pubescente
eu sorri para apagar as penas

sou um criminoso
Maria Cecília Inês
que o lamento desse lago
me lave

terça-feira, 24 de maio de 2016

Nostalgia

Vivo no limiar do tempo,
guardando lembranças do futuro.
No crepúsculo apático
as nuvens dançam;
Como o Sol, estou
Sozinho.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Madrepérola

Sou uma ostra.
Flutuo nas lágrimas
das mães baleia
e de todos os marinheiros nostálgicos.
Banqueteio-me com migalhas
e as entendo.
Vivo dos cílios do mar
para que ela e eu choremos juntas.

Sou uma ostra.
Tenho milhares de corações em cada praia,
minhas entranhas são feitas de sol e serenidade verde.
Cumprimento aos peixes
canto com corais
e observo o balé invernal das focas.
Transformo minhas feridas em joias,
pois terei que vesti-las.

Sou uma ostra e você me come viva
e agora me contorço e grito
apenas para continuar consciente
antes que o mar me clame sua filha
antes que eu não ouça mais as praias borbulhantes
pelo menos, você diz, eu tinha
uma linda concha.

domingo, 10 de abril de 2016

solo

cada luz acesa é um desconvite
cada passo dado
sobre os focos perolados
persiste
no tilintar das chaves, agora inúteis
no final do corredor, que devolve
todas as memórias apagadas

deixe-me ser o som. deixe morrer o som.
no latão da minha mente cada toque ecoa maldito
e o azul mortiço do poente não ajuda
a deixar de ouvir

há um lago entre nós, mas não há praias
há um lago e eu poderia ser Schumann
se estivesse naquela sala
mas apenas abro caminho e digo à funcionária
que passe

segunda-feira, 7 de março de 2016

Corujas (Melancholia #2)

Noite, como eu lhe amava!

Gostaria de ser capaz de lhe tocar o rosto, ouvir seu silêncio como devo ter ouvido um dia - como foi feito para ser ouvido, silêncio. Gostaria de te entregar meu hálito e, seguro em teus braços, flutuar no mesmo rio, naquela barca que lembra tanto a de Caronte.

Mas não mais.

Não mais ouço aquela voz ao chegar em casa, seus olhos verdes de quem nunca viu o mundo; não mais abraçarei ninguém que me esperava; não mais recebo teu ar fresco, teu silêncio, teu sono.

Em vez disso, corujas.

Não sei se elas vêm ou se sempre estão comigo; são minhas harpias, que arranham minhas costas e mordem meu pescoço, mudas; covardes o suficiente para esperar - por ti, esperar até que eu fique sozinha.

A última luz é apagada e eu sinto o bater de asas ao meu lado. Não a vejo, mas antecipo: Memória. Pois logo, do outro lado do quarto, lá está ela, feliz por me ver; ela não sabe que seus olhos vermelhos saltam das órbitas, que suas costelas estão quebradas, que eu não posso tocá-la pois já a tirei do lixo, está banhada e enterrada -

Ah, eu lhe conheço, eu lhe conheço bem, e hoje não. Hoje não. Mas eu não lhe ouço, tudo que existe é aquele pequeno cadáver, e outro, e outro, e tantos outros.

Pelo menos ela teve um funeral, você diz.

Apenas ela, memória, e já não sei se essa voz é minha ou outra; sinto seus pés frios tocarem o topo da minha cabeça, mas a voz - a voz que interrompe o cortejo e me lembra de tantas almas - a voz não é sua, e me olha ao pé da cama, e eu não ouvi suas asas mas já a conheço; Desprezo, seu olhar de suindara já me atravessou antes, e você está certa.

Não, não está. É madrugada e eu tenho que dormir, mas você e eu sabemos quantos partiram, e por quê - e você não estava aqui, estava? não, eu não estava, e eu sei, eu sei, eu sei, e é por isso que seu peso em meu peito é um dever, e é por isso que Memória penteia meus cabelos, é por isso que, antes de perceber, já soluço com voz estrangeira - é minha culpa, não posso mais fazer nada, eu os amava, eu os amo, eu ainda os amo.

Não, você não ama, você só é egoísta. Você só precisa de alguma coisa para cuidar e alguém que te admire por isso. Mas por Deus, você não consegue nem cuidar de si. Não consegue fazer o básico para sua sobrevivência. Não consegue se manter funcionando. Ela fecha suas garras ao redor de meu pescoço, olhe só você. Você é inútil, você sabe disso, não adianta vir com positividade pra cima de mim. Você é inútil quando se trata de sua própria vida; uma formiga tem mais propósito. Você não consegue terminar nada, proteger ninguém. Memória concorda com a cabeça, sua coroa de cipreste cai sobre munhas pernas; Desprezo repara em suas botas de couro, traga e ri - Melpômene? você vestiu sua memória de Melpômene? ela gargalha, e eu rio porque ela me faz cócegas, e eu quero correr mas há uma coruja sentada em meu peito e ela fuma; 'você sabe que isso é autopiedade, não sabe? como é patético?'

Filha bastarda de Saturno, não me deixa respirar! Eu luto mas não há ar suficiente para meus pulmões cansados; se ao menos não houvesse silêncio, se ao menos - tento me preencher com som, com sol, com drones rosados de orquestra, nada importa, ignore-as, e na luz que se constrói gradualmente eu a vejo...

Pequenas mãos claras, cabelos longos e escuros. Ela está bem, e eu sorrio. Ela parece bem ao menos, e tudo é som, e nós ouvimos, e ela sorri. Tudo sorri, até uma pena cair sobre meu estômago.

- Eu não deveria me lembrar dela - dizemos, em uníssono, eu e a Culpa.

Posso ver pelos seus olhos que ela não dorme há dias, suas penas opacas se soltando com facilidade - mas eu sei por quê ela não dorme, afinal está  aqui outra vez, e já são três; não posso fugir ou espantá-las, e eu mereço, pensamos.

- Eu deveria esquecê-la.
- Eu sei, também não gosto disso.
- Sim, mas eu lembro.
- Sim, mas eu tento evitar.
- Sim, mas quanto mais eu evito mais ela volta.
- Sim, mas eu a vejo sempre, é normal; eu lembro de tudo o que acontece antes de dormir.
- Sim, mas eu não estou dormindo, estou? E eu sorri.
- Eu sempre sorrio quando lembro dela.
- Pois pare.
- Eu paro, e por isso você está aqui.

Ela me olha com seus faróis de mocho, e eu quero desistir, mas Memória já pousou ao seu lado, curiosa e boba como um pombo.

- Mas eu não fiz nada de errado.

Tarde demais; eu joguei a isca, Culpa, agora venha bicá-la.

- Mas pensou.
- Eu não pensei nada de errado, eu acho. Lembrar de alguém não é errado.
- Nesse caso é.
- Eu estou tentando parar. Você sabe que é difícil.
- Não importa. Apenas pare.
- Sabe o que é isso? - e agora era Desprezo, e, por seu sorriso cínico eu quase podia ouvir o que ela diria em seguida:

- Esperança - ela uiva,  lábios contorcidos num prazer mórbido.

É quase manhã e eu choro, mas ela e Culpa me lembram - autopiedade - e, juntas, piam por mais outra.

- Vocês estão certas. Estão todas certas. Você, Memória, não precisa dizer nada para estar sempre certa.

Melancolia pousa em meu ombro e me afaga, mas eu sei que ela ri por dentro com o mesmo cinismo de todas as outras.

- Vocês estão certas. Por favor, vão embora.

E, conforme lembranças felizes começam a rastejar pelas penas da memória, é com pesar que sussurro - você também, vá embora, Euterpe.

Eu sei que ela não vai, e as corujas também sabem; Desprezo a esconde debaixo da asa e murmura um 'sinceramente...' que faz com que eu e Melancolia solucemos de vergonha. Ela acaricia meus cabelos, aninha-se em meu pescoço; suas penas frias e sujas não me causam repulsa, na verdade - não me causam nada.

- Ela não iria gostar de saber - Culpa ainda tenta. - Ninguém iria.
- Eu sei.
- Ela te odeia agora. Você deveria queimar seus poemas e ir embora.
- Eu sei.

Ela encolhe os ombros e espera junto às outras ao pé da cama; meus músculos tensos, pulmões doloridos, pulso acelerado - finalmente pisco depois de horas, ou dias, para perceber que ao meu redor se desenvolvia um funeral.

Elas riem, menos Melancolia. Eu não me importo. Queria ser uma formiga - elas são úteis para si e para os outros, fazem suas tarefas diárias, não são caçadas por corujas. Se eu fosse uma formiga, ninguém teria morrido. Se eu fosse uma formiga, não precisaria esquecer. Se eu fosse uma formiga, não estaria presa em uma lata cheia de fantasmas que me arranham e mordem e fazem cócegas e sussurram em meus ouvidos; não iria querer correr, rir, chorar ou morrer - eu não quero morrer e me tornar parte deles. Eu dormiria, talvez tivesse até vontade de acordar.

Já é manhã, e elas vão embora com sua missão cumprida - Melancolia com um sorriso no rosto. Vão embora quando o Sol já superou o horizonte; vão embora com minhas lágrimas, com o maldito silêncio.

Noite, como eu lhe amava.

(Melancholia #1, em inglês, foi postado aqui)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

blanchefleur

sereias mudas
sorriem pérolas
naufragadas

seus olhos calmos
de aurora
felina

dormem nas ondas
distantes
da praia

domingo, 7 de fevereiro de 2016

(escrito enquanto ouvia Moon Ate The Dark - Sand That Remembers the Rock It Once Was)

I

sento-me à beira de um pote de vidro
tão vazio tão limpo tão eterno
que não percebo que caí dentro dele

II

imensidão estéril e translúcida,
tua alma tem a boca aberta de um peixe niilista
na beira do universo não há estrelas
não há silêncio que ecoe as vozes que amavas
não há espaço ou movimento que incomode os mortos
não há esperança de tampa alguma que liberte aos insetos
não existe inferno
o inferno é um lugar de vidro e vácuo
onde nada importa
e mesmo assim dói

III

o inferno é um lugar de vidro e vácuo
onde nada importa
e tudo dói
não há voz que nos perturbe o peito
não há certezas que nos descansem os olhos
não há teto para aliviar a queda
o passado é o presente eterno
e o futuro é a esperança que murcha
como uma rosa apática no parapeito da janela
branca
resignada
chata
não há tempo a não ser o da memória -
sonhos vívidos de um coma -
as rosas mesmas são mártires
mofo cresce sem ímpeto
e a vida é uma cadeira na calçada ao fim da tarde
só ela, na rua infinita
onde nunca é noite e nunca é dia
e as pessoas mugem
lembrando de quando a areia ainda era pedra
mas essa
já não se lembra

IV

Ao soarem as quatro, um macaquinho de corda -
cínico!

Todos os animais na mesa de dissecação
parecem olhar as lâmpadas
que se curvam com piedade sobre suas cabeças
Seus olhos são vítreos mas não há mortos
sob eles o metal se conforma
com clorofórmio e ausência

Um pássaro de origami sob uma réstia de sol
esqueceu como se voa
e um jaleco deitado no chão
respira com dificuldade

V

Alguém fez uma bola de sorvete,
e a equilibrou em cima de outra,
e as equilibrou sobre um cone.

O vento que sopra e o creme que escorre
São a expressão mais enérgica da vida.