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segunda-feira, 7 de março de 2016

Corujas (Melancholia #2)

Noite, como eu lhe amava!

Gostaria de ser capaz de lhe tocar o rosto, ouvir seu silêncio como devo ter ouvido um dia - como foi feito para ser ouvido, silêncio. Gostaria de te entregar meu hálito e, seguro em teus braços, flutuar no mesmo rio, naquela barca que lembra tanto a de Caronte.

Mas não mais.

Não mais ouço aquela voz ao chegar em casa, seus olhos verdes de quem nunca viu o mundo; não mais abraçarei ninguém que me esperava; não mais recebo teu ar fresco, teu silêncio, teu sono.

Em vez disso, corujas.

Não sei se elas vêm ou se sempre estão comigo; são minhas harpias, que arranham minhas costas e mordem meu pescoço, mudas; covardes o suficiente para esperar - por ti, esperar até que eu fique sozinha.

A última luz é apagada e eu sinto o bater de asas ao meu lado. Não a vejo, mas antecipo: Memória. Pois logo, do outro lado do quarto, lá está ela, feliz por me ver; ela não sabe que seus olhos vermelhos saltam das órbitas, que suas costelas estão quebradas, que eu não posso tocá-la pois já a tirei do lixo, está banhada e enterrada -

Ah, eu lhe conheço, eu lhe conheço bem, e hoje não. Hoje não. Mas eu não lhe ouço, tudo que existe é aquele pequeno cadáver, e outro, e outro, e tantos outros.

Pelo menos ela teve um funeral, você diz.

Apenas ela, memória, e já não sei se essa voz é minha ou outra; sinto seus pés frios tocarem o topo da minha cabeça, mas a voz - a voz que interrompe o cortejo e me lembra de tantas almas - a voz não é sua, e me olha ao pé da cama, e eu não ouvi suas asas mas já a conheço; Desprezo, seu olhar de suindara já me atravessou antes, e você está certa.

Não, não está. É madrugada e eu tenho que dormir, mas você e eu sabemos quantos partiram, e por quê - e você não estava aqui, estava? não, eu não estava, e eu sei, eu sei, eu sei, e é por isso que seu peso em meu peito é um dever, e é por isso que Memória penteia meus cabelos, é por isso que, antes de perceber, já soluço com voz estrangeira - é minha culpa, não posso mais fazer nada, eu os amava, eu os amo, eu ainda os amo.

Não, você não ama, você só é egoísta. Você só precisa de alguma coisa para cuidar e alguém que te admire por isso. Mas por Deus, você não consegue nem cuidar de si. Não consegue fazer o básico para sua sobrevivência. Não consegue se manter funcionando. Ela fecha suas garras ao redor de meu pescoço, olhe só você. Você é inútil, você sabe disso, não adianta vir com positividade pra cima de mim. Você é inútil quando se trata de sua própria vida; uma formiga tem mais propósito. Você não consegue terminar nada, proteger ninguém. Memória concorda com a cabeça, sua coroa de cipreste cai sobre munhas pernas; Desprezo repara em suas botas de couro, traga e ri - Melpômene? você vestiu sua memória de Melpômene? ela gargalha, e eu rio porque ela me faz cócegas, e eu quero correr mas há uma coruja sentada em meu peito e ela fuma; 'você sabe que isso é autopiedade, não sabe? como é patético?'

Filha bastarda de Saturno, não me deixa respirar! Eu luto mas não há ar suficiente para meus pulmões cansados; se ao menos não houvesse silêncio, se ao menos - tento me preencher com som, com sol, com drones rosados de orquestra, nada importa, ignore-as, e na luz que se constrói gradualmente eu a vejo...

Pequenas mãos claras, cabelos longos e escuros. Ela está bem, e eu sorrio. Ela parece bem ao menos, e tudo é som, e nós ouvimos, e ela sorri. Tudo sorri, até uma pena cair sobre meu estômago.

- Eu não deveria me lembrar dela - dizemos, em uníssono, eu e a Culpa.

Posso ver pelos seus olhos que ela não dorme há dias, suas penas opacas se soltando com facilidade - mas eu sei por quê ela não dorme, afinal está  aqui outra vez, e já são três; não posso fugir ou espantá-las, e eu mereço, pensamos.

- Eu deveria esquecê-la.
- Eu sei, também não gosto disso.
- Sim, mas eu lembro.
- Sim, mas eu tento evitar.
- Sim, mas quanto mais eu evito mais ela volta.
- Sim, mas eu a vejo sempre, é normal; eu lembro de tudo o que acontece antes de dormir.
- Sim, mas eu não estou dormindo, estou? E eu sorri.
- Eu sempre sorrio quando lembro dela.
- Pois pare.
- Eu paro, e por isso você está aqui.

Ela me olha com seus faróis de mocho, e eu quero desistir, mas Memória já pousou ao seu lado, curiosa e boba como um pombo.

- Mas eu não fiz nada de errado.

Tarde demais; eu joguei a isca, Culpa, agora venha bicá-la.

- Mas pensou.
- Eu não pensei nada de errado, eu acho. Lembrar de alguém não é errado.
- Nesse caso é.
- Eu estou tentando parar. Você sabe que é difícil.
- Não importa. Apenas pare.
- Sabe o que é isso? - e agora era Desprezo, e, por seu sorriso cínico eu quase podia ouvir o que ela diria em seguida:

- Esperança - ela uiva,  lábios contorcidos num prazer mórbido.

É quase manhã e eu choro, mas ela e Culpa me lembram - autopiedade - e, juntas, piam por mais outra.

- Vocês estão certas. Estão todas certas. Você, Memória, não precisa dizer nada para estar sempre certa.

Melancolia pousa em meu ombro e me afaga, mas eu sei que ela ri por dentro com o mesmo cinismo de todas as outras.

- Vocês estão certas. Por favor, vão embora.

E, conforme lembranças felizes começam a rastejar pelas penas da memória, é com pesar que sussurro - você também, vá embora, Euterpe.

Eu sei que ela não vai, e as corujas também sabem; Desprezo a esconde debaixo da asa e murmura um 'sinceramente...' que faz com que eu e Melancolia solucemos de vergonha. Ela acaricia meus cabelos, aninha-se em meu pescoço; suas penas frias e sujas não me causam repulsa, na verdade - não me causam nada.

- Ela não iria gostar de saber - Culpa ainda tenta. - Ninguém iria.
- Eu sei.
- Ela te odeia agora. Você deveria queimar seus poemas e ir embora.
- Eu sei.

Ela encolhe os ombros e espera junto às outras ao pé da cama; meus músculos tensos, pulmões doloridos, pulso acelerado - finalmente pisco depois de horas, ou dias, para perceber que ao meu redor se desenvolvia um funeral.

Elas riem, menos Melancolia. Eu não me importo. Queria ser uma formiga - elas são úteis para si e para os outros, fazem suas tarefas diárias, não são caçadas por corujas. Se eu fosse uma formiga, ninguém teria morrido. Se eu fosse uma formiga, não precisaria esquecer. Se eu fosse uma formiga, não estaria presa em uma lata cheia de fantasmas que me arranham e mordem e fazem cócegas e sussurram em meus ouvidos; não iria querer correr, rir, chorar ou morrer - eu não quero morrer e me tornar parte deles. Eu dormiria, talvez tivesse até vontade de acordar.

Já é manhã, e elas vão embora com sua missão cumprida - Melancolia com um sorriso no rosto. Vão embora quando o Sol já superou o horizonte; vão embora com minhas lágrimas, com o maldito silêncio.

Noite, como eu lhe amava.

(Melancholia #1, em inglês, foi postado aqui)

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